13 de novembro de 2014

Movimentos iniciais de “Tocar uma casa”, inédito de Alexandre Moraes




[Imagem de Richard Galpin]


TOCAR UMA CASA


0.
Atravessar uma paisagem
ou habitar palavras
não é como pensar
             na morte.
Muito mais a morte
tem algo de liso
e isto poderia ser
como atravessar
uma folha em branco.
Quando morri,
sem formas ou estrelas,
atravessei linguagens,
mas não me dediquei
tempo a tocar uma casa.
             Apenas liso,
             caminhando
             entre as portas
             e a insônia
             fotográfica
             da paisagem.


1.
Tudo aqui é
diferente
e não há
começo:
quando vi,
já em meio
movimento,
não era mais
possível sair
sem suicídio.
Assim
uma linguagem
em que
cortasse
num papel
os movimentos
do dia
continuando
pela rua nublada.

(Existem apenas
alguns escritos
tocados no chão).

Os riscos e as chuvas
caem com simplicidade
e nunca dissipariam
culpas e olhos mudos
de antes.

Tudo está filmado,
soterrado em imagem,
redistribuído numa
série toda de colagens
imprevisíveis
sob um
instante
seco.


2.
Os lápis,
cadernos
e flores
caem e
despedaçam
pelo chão.

Nesse instante,
impreciso e liso,
só é possível dizer:
há uma
cabeça
cortada
por dentro.

Tocar uma casa,
recolhendo os lápis e as flores,
retrai o movimento,
encolhe todo tremor,
reescreve os poemas
em forma de criança correndo,
mas molha a língua
e os dias ficam cheios
de mortos boiando.


3.
Ela grita toda
pelo tempo
dentro da casa.

Os sons cobrem
os panos de prato
cheios de sangue,
desliza sozinha
pelos corredores
da paisagem,
enche de nuvens
os pratos.

Sabe que vai encontrar
alguma coisa
perdida
na pedra da voz.

Evaporou,
grita
para dentro.


4.
Era branca a dor.
Olha quieto
os cantos da casa:
nutre alguma coisa
diante das palavras.

Enfrentaria
o horizonte
com o rosto
escorrido.

Sabe que os corpos
correm como peixes
muito cansados,
músculos cortados.

Escreve paisagens
num caderno,
percebe
que ainda
viveria muito
sem nome sequer,
fabricando gestos
e palavras.

Atravessava a casa,
amava
um corpo escrito
com uma palavra seca:
era branca
toda metáfora
que tocava.

Nutria a liberdade
como quem prepara
a faca.


Alexandre Moraes é poeta e ensaísta. Nasceu no Rio de Janeiro (RJ). Vive e trabalha em Vitória (ES). Publicou os livros Pintura para primeiros barcos (2014), Preparação para o exercício da chuva (2010), A sequência de todos os passos (2009), Paisagem sobre corpo em silêncio (2008), Coisas quebradas (2005), Pequenos filmes sobre o corpo (1997) e Objetos com nomes (1995).