4 de setembro de 2014

Poemas da Série "O Menino Insiste", de Maurício Chamarelli

     I.



O menino fere

ele não

sorri



insiste em silêncio

(como uma

rocha

pendendo sobre o abismo, o horizonte ao fundo

3 ou 4 braços a me puxar para trás)



O menino não fala. Não

conversa. Não

está preocupado com o preço da cerveja que me faz beber,

com as linhas brancas deitadas sobre o espelho, as cicatrizes se alinhando no rosto.



Não possui chave alguma

estatelado lá

como lei



O menino não tem nenhuma das pernas. E não

vai a lugar algum.



Eu não sou

o menino. Isso

eu sempre soube

(desde o dia em que entre essas paredes não coube mais a cabeça inchada de janelas).



Só não sabia

que a cada vez que voltasse aqui

(à casa de insuportáveis paredes)

teria de assassiná-lo outra vez.



     II.



O menino brinca entre os muros do jardim



Não sabe que é tarde. E que lhe custará caro ter assim negligenciado a medida do tempo.



Logo, não voltará a sorrir. E o brinquedo em suas mãos se tornará faca. E dentes.



É surdo a todo apelo. Vai

e volta com alguma novidade entre as mãos gordinhas, um galho, um inseto morto, uma pena de rolinha.



O gesto singelo prepara o futuro que ele ainda não conhece,

o seu futuro, o futuro em que será ele também, totem, folha morta, resto de voo e raiz esquecida



Cutuca o corpo inerte do inseto

e quase descobre a morte.



(Vai perder amigos, parentes. Vai se tornar o homem sisudo e responsável, talvez. Mas não vai aprender a deixar de cutucar cadáveres.

Não saberá parar de brincar com sementes que não vingaram,



ou cogumelos crescendo sobre o tronco amputado da árvore diante da casa, cogumelos e sua textura animal, invasiva, seu crescimento desenfreado, seu jeito de abutres proliferando na escuridão de superfícies velhas, úmidas, seu jeito de rugas, cogumelos no rosto da avó.)



Vai arranhar o joelho no concreto áspero e entrar chorando para casa. Consolar-se entre braços queridos, seu cabelo de pequeno índio, lavar a ferida, essas coisas. Se eu pudesse lhe falar, não lhe diria nada. Deixaria que estivesse onde e como esteve, gosto que tenha sido como foi. Que seja como é. Só queria saber por que insiste

em me visitar nessas noites tensas

só queria saber por que insiste entre paredes

e muros

e todo jardim



(…)



     V.



Se escrevo é porque há o menino



porque pesa seu olhar sobre a casa.



Há dias em que é impossível

qualquer coisa



lembrar a ansiedade nas noites de natal

a brincadeira de pirata na rede da avó

a casa nos fundos com as ferramentas do avô

o estranho ritual de iniciação dos homens provando o molho de pimenta



Às vezes escrever é desviar o olhar do menino



às vezes, encará-lo

ou querer ver com seus olhos e não poder



(O menino não enxerga não fala é só uma fome sem fim)



(…)



     X.



– No fundo, você escreve para livrar-se do menino, mantê-lo à distância,

para tornar sua presença mais palatável,

no fundo você quer que ele te ame, o menino, quer abraçá-lo e que ele o console, quer poder brincar com ele



ou que ele o deixe em paz, com

seus vinte e tantos anos



e só.



No fundo você quer calar o menino.



Você sabe que ele fala, que ele tem muito a dizer, só não quer ouvir. E se devota com afinco ao ofício amargurado de escrever para não escutá-lo, trazendo de novo e de novo um terceiro para interceder por você.



(Esse terceiro você chama de poema, ou de linhas tortas, ou de trechos, acerto de contas, não importa ou pouco importa como você o chame porque ele continua sendo o que é: o anteparo da sua surdez.)



(…)



     XIV.



Enquanto escrevo, o menino me olha

debruçado sobre a mesa.



Quero lhe explicar

por que escrevo

e por que não espero dessas linhas que sejam poemas,

mas um acerto de contas.

E por que, no fim das contas,

essa questão não importa.

Quero dizer-lhe que escrevo para poder tê-lo próximo e não sucumbir

a seu peso

para mantê-lo, ali, teso, em silêncio



para protelar sua presença, sustentar sua mudez sem me jogar da varanda.



Mas ele me vê

e sabe que, no escuro, sustento a alegria vaidosa de escrever uma série de poemas,

– sim, de poemas (não importa que diga o contrário) –

poemas contando suas visitas e o trabalho que elas me dão

ele sabe o absurdo desenfreado dessa atividade, sabe que com a desculpa de tentar nos manter vivos, me prostituo à mais convencional das soluções, ao mais ridículo dos gestos



sabe que a pessoa que sobrevive ao esforço ambíguo de fazer justiça à sua morte pode, simplesmente, não merecer ser salva.



E ele sabe da minha vergonha.



Não. O menino não sabe nada. Jaz mudo, impassível diante dos estertores ainda mais convencionais e ainda mais ridículos dessas linhas.

Sem pergunta ou explicação, sem acerto de contas, sem se importar com a vergonha ou com os motivos,

ele me olha.



     XV.



Para o menino não há escrita.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Maurício Chamarelli Gutierrez nasceu em 1984, no Rio de Janeiro. É autor dos livros Corpo Tênue (2006) e Largo (2010). Exilou-se há dois anos no sul do país para concluir sua tese de doutorado, fugido da ditadura da boemia do Rio de Janeiro.