10 de abril de 2014

O que diz a luz




Por Ronaldo Ferrito


Antes de enxergarmos algo, antes ainda de podermos lançar em algo o nosso olhar (por exemplo, se miramos um gato negro e fugidio sobre o muro), somos assaltados pela presciência de que algo existe e é visível (o gato negro), pelo pressentimento de uma existência iluminada e alheia que espera ser vista, para somente então voltar a apagar-se em nossa visão (o gato em fuga). A condição dessa presciência de algo visível, do pressentimento de algo iluminado que espera e do seu apagamento fugaz é a luz, que a tudo revela, mas não pode revelar-se a si mesma. A luz não pode revelar-se a si mesma e, portanto, com a fuga do gato que iluminava, ela própria não permanece conosco enquanto brilho, ela se apaga com o gato embrenhado na escuridão. Só as coisas brilham, só as coisas molham sua superfície na luz e, por isso, a luz não pode brilhar – porque não tem limites de coisa. Tão-somente uma coisa pode brilhar, posto que só os limites de algo podem ser iluminados enquanto a luz constrói o nosso horizonte e o que vemos no mundo. Por conseguinte, nunca se poderia iluminar a pura amplitude. A pura amplitude é a escuridão. O gato negro, que é coisa de contornos, pode ser iluminado, pode brilhar e, pelo mesmo motivo, ser pressuposto, pressentido e, finalmente, nos oferecer uma silhueta esbatida na luz. Nessa visão oferecida, a luz nos revela uma existência, mas também limita sua revelação. A luz inventou para nós esse gato negro, porque todo gato, como coisa e brilho, é uma interpretação da luz. Quando entendemos que a luz ilumina ou inventa o que vemos do mundo, não podemos acreditar que ela o cria propriamente, mas somente que o retira da escuridão que ela mesma interpreta. Tudo o que podemos ver, portanto, é – a princípio – o que a luz já interpretou da escuridão e, ironicamente, porque não pode revelar-se em si mesma, a luz pode reinventar-se nas coisas. Podemos dizer que a luz é, por interpretar as coisas antes de nós, uma arqui-interpretação do mundo revelada à nossa visão. Só interpretamos aquilo que vemos depois dessa interpretação luminosa apriorística. Devemos admitir com isso a situação de que, ao lançar-se novamente no negrume, na matéria escura da noite, o gato escaparia do mundo revelado pela luz, nos isentando consequentemente de uma sua arqui-interpretação. Por conseguinte, nos isenta também da possibilidade de engendrarmos toda uma série de interpretações nossas e urdiduras consequentes de sua visão. A luz, enquanto uma das arqui-interpretações do universo, nos oferece graves implicações.


Retomarei a ideia já colocada da escuridão como uma matéria escura, pois – para a luz – ela não seria outra. A luz não só estabelece a interpretação primeira da escuridão sem limites, como também nos possibilita uma intervenção precisa na própria matéria escura. Só pela luz podemos tocar os limites do que se guarda ilimitado no breu do mundo. Essa intervenção pode ser averiguada facilmente a partir das alterações que podemos operar nas coisas. Podemos alterar uma série de objetos, por exemplo, um conjunto de cadeiras, à luz acesa de um quarto, para posteriormente, já alteradas (e portanto diferentes de como surgiram primeiramente perante nós) devolvê-las à escuridão. Assim feito, pudemos lançar na escuridão um objeto que fora precisamente planejado por nós mesmos, causando nossa intervenção precisa na sua matéria escura e reconstruindo por ela toda a nova arqui-interpretação do mundo que nos será dada pela luz. Isso ocorre porque a luz é apenas o que limitado nos chega do não-limite da escuridão, a contraparte do nada que nos é lícito interpretar.


O contrário, porém, não acontece certamente. Não se poderia intervir com precisão na matéria escura de dentro da própria escuridão. Se assim o fazemos, à luz apagada do quarto, notamos que essas nossas intervenções não aparecerão tal como imaginávamos e intencionávamos tão logo voltemos a acender a luz, salvo por uma coincidência extraordinária, divina. Um objeto alterado por nós de dentro da matéria escura do quarto (uma cadeira que talvez precise de reparo), ao ser iluminado, irá certamente nos surpreender em sua nova forma, porque esta poderá ser interpretada pela luz de modo muito diferente do que esperávamos que fosse, ou mesmo do que tínhamos certeza de que fosse, segundo nossa própria e cega interpretação. Assim, se, por exemplo, já na escuridão, tentamos montar uma cadeira (com quatro pernas e seus parafusos correspondentes) e operamos de acordo com o que interpretamos sozinhos da montagem, na ausência dos limites da luz, podemos terminar nosso trabalho com a sensação, e até a certeza, de que o fizemos com total perfeição. Entretanto, quanta surpresa teremos, quando acendermos a luz do quarto e essa mesma luz interpretar toda nossa operação realizada no escuro de modo completamente diverso daquele nosso engendrado na escuridão; posto que a cadeira é apresentada agora – pela luz – inteiramente inconfiável, talvez com um pé torto à frente e três parafusos lancinantes no espaldar. O que na escuridão nos era perfeito, na interpretação da luz se revelou inconfiável. Atentemos ainda para que não só a perfeita cadeira, mas nós mesmos, ao longo do tempo em que estivemos no escuro, nos sentimos estranhos corporalmente, quase outros e de certo modo até impalpáveis. Não conseguimos, pois, realizar o que construímos, sem luz, na completa escuridão. Evidentemente, isso não acorreu porque, por ventura, fomos inábeis e incompetentes nas nossas alterações dos objetos, ou nas nossas intervenções operadas no caos, mas somente porque resolvemos inadvertidamente ignorar que somente aquela arqui-interpretação do universo realiza os limites do mundo e que deve ser naturalmente anterior à nossa própria interpretação de algo e, por conseguinte, anterior a qualquer de nossas realizações. Mesmo um carpinteiro experiente passaria por esse desconcerto se trabalhasse diretamente na matéria escura da noite. Estaria confiante exclusivamente em sua obumbrada interpretação subjetiva do mundo, ao passo que para ver o mundo é preciso consultar seus limites, para somente depois mergulharmos no seu abismo ilimitado. A luz, que revela os limites, é nosso único meio de diálogo com o deslimite da escuridão. A luz quer nos dizer obstinadamente o que, para nós, silencia no escuro. A luz não pode revelar-se de todo, porque a luz não é mais que a linguagem da escuridão.